O conceito de indicios suficientes no processo pena portugues- Jorge Silveira-parte 1
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O conceito de indicios suficientes no processo pena portugues- Jorge Silveira-parte 1
Jorge Silveira leccionou, entre 1982 e 1988, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Em 1988 e 1989 leccionou no Curso de Direito da então Universidade da Ásia Oriental a cadeira de Direito Constitucional. Foi, em Macau, entre Agosto de 1996 e Dezembro de 1999, Secretário-Adjunto para a Justiça. Actualmente lecciona na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
O texto que publicamos, que será publicado em livro, foi apresentado nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, realizadas na Faculdade de Direito de Lisboa entre 3 e 6 de Novembro de 2003.
O conceito de indícios suficientes no processo penal português
[1] [2]
1. Quadro legal e importância do conceito
I. O Código de Processo Penal[1] utiliza a expressão indícios suficientes para definir um dos pressupostos essenciais para a dedução da acusação e para a prolação do despacho de pronúncia em processo penal.
Refere, com efeito, o n.º 1 do seu artigo 283.º que, «se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público (...) deduz acusação contra aquele»[2].
O n.º 1 do artigo 308.º, por seu turno, estabelece que «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos».
Não se logrando alcançar indícios suficientes, devem os mesmos sujeitos proferir, respectivamente, despacho de arquivamento do inquérito ou despacho de não pronúncia.
Efectivamente, esclarece o n.º 2 do artigo 277.º que «o inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os agentes”. E orientação equivalente resulta, para o juiz de instrução, da parte final do já citado n.º 1 do artigo 308.º, na parte em que o legislador acrescenta: «caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
II. O presente estudo visa esclarecer o significado do conceito de indícios suficientes no processo penal português. Para alcançar esse objectivo, seguir-se-á o seguinte plano: começar-se-á por salientar a importância do mencionado conceito na estrutura do processo penal; passar-se-á depois à exposição e análise crítica das principais interpretações possíveis para a expressão e à defesa do significado considerado mais correcto; na parte final, relacionar-se-á o conceito com realidades afins e com alguns princípios estruturais do processo penal que se prendem com a problemática em causa.
III. O uso da expressão indícios suficientes não constitui novidade em Portugal. Ela já aparecia, com significado semelhante, no CPP de 1929, quer referida à acusação, quer ao despacho de pronúncia[3].
Como sinónimo de indícios suficientes, a legislação anterior a 1987 usava por vezes a expressão prova bastante[4]ou prova indiciária[5].
De salientar, no entanto, que o novo Código é inovador num aspecto: inclui uma definição legal de indícios suficientes. Ela consta do n.º 2 do art. 283.º, de acordo com o qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». A legislação anterior não continha tal definição, que era deixada ao intérprete.
A expressão indícios suficientes carece efectivamente de ser esclarecida. Ela não é elucidativa, pois está incompleta. Para a compreender, é indispensável perguntar: suficientes para quê[6]?
A resposta é encontrada através da análise da função que o conceito desempenha na estrutura do processo penal.
IV. Como é sabido, é possível, na marcha do processo penal comum, operar uma distinção entre duas grandes fases: a fase preparatória ou preliminar e a fase de julgamento[7]. Essa diferenciação, que está nomeadamente presente na sistematização do CPP ao autonomizar, na sua Parte II, os Livros VI e VII, só se compreende recorrendo ao mencionado conceito.
Efectivamente, entende o legislador português, acompanhado aliás pelo da generalidade dos países, que só é legítimo ao Estado submeter uma pessoa a julgamento pela prática de um crime havendo comprovados motivos que o justifiquem. O que impõe que a primeira etapa da tramitação do processo penal comporte uma fase, ou um conjunto de fases, que visa investigar cabalmente a existência de um crime de que houve notícia e determinar os seus agentes, descobrindo e recolhendo as provas. Terminada essa primeira parte do processo, apelidada de preparatória, e esgotadas as diligências de investigação possíveis, importa responder à seguinte questão: há, ou não, motivos que justifiquem a submissão de alguém a julgamento? Só uma resposta afirmativa permite a progressão do processo para a fase seguinte – a de julgamento.
Não é, em regra, assim no processo civil. Na maioria dos casos, o autor não necessita de produzir antes da audiência final a prova dos factos que alega. Basta-lhe apresentar uma petição inicial sem erros formais graves para que o processo possa avançar até à fase de julgamento.
Esta especial estruturação do processo penal encontra a sua razão de ser na particular gravidade das consequências que podem advir da simples submissão de uma pessoa a julgamento penal. Mesmo que essa pessoa não venha a ser condenada, ela sofrerá inevitavelmente fortes prejuízos para o seu nome e reputação pelo simples facto de «ter de se sentar no banco dos réus». Na verdade, e para além da possibilidade de se lhe continuar a aplicar eventuais medidas de coacção e de garantia patrimonial, que podem restringir de forma substancial os seus direitos fundamentais, é irrecusável o efeito sociológico estigmatizante resultante do conhecimento público de que uma pessoa vai ser julgada em processo penal.
O acto processual que representa a transição da fase preparatória para a de julgamento é a acusação ou a pronúncia. E o conceito que está pressuposto nesse salto qualitativo é o de indícios suficientes.
Nos crimes públicos e semi-públicos a acusação, a existir, é sempre formulada em primeiro lugar pelo Ministério Público. Ela significa o momento crucial do exercício da acção penal, chamando determinada pessoa à responsabilidade, para ser julgada pela jurisdição penal. Face ao princípio da obrigatoriedade a que o Ministério Público está vinculado, a dedução de acusação e a avaliação da suficiência de indícios que lhe está pressuposta traduz para este órgão do Estado um dever[8]. O assistente, querendo, acompanhará a acusação pública através de uma acusação subordinada (artigo 284.º).
Nos crimes particulares, a acusação, a existir, é sempre formulada em primeiro lugar pelo assistente. A sua dedução é um direito, cabendo ao assistente avaliar com plena liberdade da oportunidade do exercício da acção penal. Mas, embora o CPP não o afirme expressamente, deve entender-se que o exercício desse direito pressupõe também uma avaliação afirmativa quanto à existência de indícios suficientes[9].
Assim, a acusação é o meio processual de promover o exercício da acção penal. Independentemente de se aceitar que ela traduza o exercício de um direito de acção judicial em sentido próprio, ela representa sem dúvida o impulso exterior necessário para que a jurisdição penal actue.
No que toca ao despacho de pronúncia, ele é proferido pelo juiz que dirige a instrução. Sendo esta uma fase facultativa, cuja abertura depende de requerimento do arguido ou do assistente, a verificação judicial da suficiência dos indícios só tem lugar, segundo o actual modelo processual penal português, havendo uma iniciativa nesse sentido do arguido ou do assistente. E a avaliação feita pelo juiz de instrução é a comprovação judicial da avaliação anteriormente realizada pelo Ministério Público e pelo assistente (n.º 1 do artigo 286.º).
De salientar que o conceito de suficiência dos indícios é utilizado, na acusação e na pronúncia, exactamente com o mesmo significado. Os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento. Para o processo penal, a existência de suficiência de indícios significa que os indícios são suficientes para submeter alguém a julgamento[10]. O conceito está, assim, directamente ligado ao direito ao bom nome e reputação do cidadão, também por vezes conhecido como o direito à boa fama, cuja tutela aponta no sentido de serem evitados julgamentos injustificados.
V. A distinção entre fase preparatória e fase de julgamento envolve uma outra, que nela está pressuposta: a distinção entre juízo de certeza e juízo de probabilidade.
Para o final da fase de julgamento está reservado o juízo de certeza. Ele visa alcançar a prova dos factos alegados em juízo. No final da fase preparatória o juízo a formular é de probabilidade de futura condenação.
Como salienta Cavaleiro de Ferreira, «a prova do julgamento não é a prova para a acusação e tem alicerces numa certeza, e não numa probabilidade»[11].
Assim, os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento; e isso acontece quando a condenação for provável.
2. Significado da expressão indícios suficientes
2.1. Generalidades
I. Explicitada a sua função na marcha do processo penal, é chegado o momento de aprofundar o significado da expressão indícios suficientes.
A expressão é composta por dois vocábulos: indícios e suficientes.
De salientar, desde já, que a definição constante do n.º 2 do artigo 283.º apenas se reporta ao segundo vocábulo. A lei não nos diz o que são indícios, apenas explica quando os considera suficientes.
Esta ausência de definição terá certamente a ver com o facto de a palavra indícios ser utilizada com um sentido próximo do comum, não necessitando de um especial critério normativo: indício é uma palavra de origem latina que significa sinal, marca, indicação. Aplicado à investigação criminal, o conceito reporta-se à tarefa de descoberta e recolha de provas.
A palavra indícios, que aliás o CPP utiliza amiúde[12], refere-se, assim, ao conjunto das provas já recolhidas no processo[13] [14].
II. Para o qualificativo suficientes existe, como já se referiu, a definição legal constante do n.º 2 do artigo 283.º, a qual relaciona a suficiência dos indícios com uma possibilidade razoável de condenação em julgamento.
A avaliação da suficiência exige, assim, um juízo prognóstico sobre a possibilidade de condenação no final da fase do julgamento. O que pressupõe um raciocínio de conjugação entre todos os indícios, por forma a fundamentar esse juízo de prognose.
Esta definição, porém, continua a não ser esclarecedora. O que significa uma possibilidade razoável de condenação? Qual o grau de probabilidade que este conceito comporta?
Na resposta que doutrina e jurisprudência têm dado a estas questões podem distinguir-se três correntes fundamentais:
– uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;
– numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;
– e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.
Vejamos mais de perto cada uma destas soluções e façamos a análise crítica dos argumentos por elas invocados.
2.2. Suficiência como mera possibilidade, ainda que mínima
Numa primeira opinião, que se pode apelidar de menos exigente, os indícios já são suficientes quando deles resulte uma mera possibilidade, ainda que diminuta ou ínfima, de condenação.
Esta solução, que tem tido poucos seguidores, surge em regra associada especificamente à definição dos requisitos para o despacho de pronúncia, não ficando muitas vezes claro se os seus defensores a advogam também para a definição dos requisitos para a acusação.
O significado de suficiência dos indícios deve, nesta interpretação, ser interpretado de harmonia com o conceito inerente à expressão acusação manifestamente infundada, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º[15].
Os defensores desta tese fazem a seguinte equiparação: tal como o juiz de julgamento, ao proferir o despacho liminar de saneamento do processo, só pode rejeitar a acusação se ela for manifestamente infundada, também o juiz de instrução, ao proferir a decisão instrutória, só deve lavrar um despacho de não pronúncia se chegar à mesma conclusão.
Para haver despacho de pronúncia basta que a submissão do arguido a julgamento não constitua «um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto»[16].
O texto que publicamos, que será publicado em livro, foi apresentado nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, realizadas na Faculdade de Direito de Lisboa entre 3 e 6 de Novembro de 2003.
O conceito de indícios suficientes no processo penal português
[1] [2]
1. Quadro legal e importância do conceito
I. O Código de Processo Penal[1] utiliza a expressão indícios suficientes para definir um dos pressupostos essenciais para a dedução da acusação e para a prolação do despacho de pronúncia em processo penal.
Refere, com efeito, o n.º 1 do seu artigo 283.º que, «se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público (...) deduz acusação contra aquele»[2].
O n.º 1 do artigo 308.º, por seu turno, estabelece que «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos».
Não se logrando alcançar indícios suficientes, devem os mesmos sujeitos proferir, respectivamente, despacho de arquivamento do inquérito ou despacho de não pronúncia.
Efectivamente, esclarece o n.º 2 do artigo 277.º que «o inquérito é igualmente arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação do crime ou de quem foram os agentes”. E orientação equivalente resulta, para o juiz de instrução, da parte final do já citado n.º 1 do artigo 308.º, na parte em que o legislador acrescenta: «caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
II. O presente estudo visa esclarecer o significado do conceito de indícios suficientes no processo penal português. Para alcançar esse objectivo, seguir-se-á o seguinte plano: começar-se-á por salientar a importância do mencionado conceito na estrutura do processo penal; passar-se-á depois à exposição e análise crítica das principais interpretações possíveis para a expressão e à defesa do significado considerado mais correcto; na parte final, relacionar-se-á o conceito com realidades afins e com alguns princípios estruturais do processo penal que se prendem com a problemática em causa.
III. O uso da expressão indícios suficientes não constitui novidade em Portugal. Ela já aparecia, com significado semelhante, no CPP de 1929, quer referida à acusação, quer ao despacho de pronúncia[3].
Como sinónimo de indícios suficientes, a legislação anterior a 1987 usava por vezes a expressão prova bastante[4]ou prova indiciária[5].
De salientar, no entanto, que o novo Código é inovador num aspecto: inclui uma definição legal de indícios suficientes. Ela consta do n.º 2 do art. 283.º, de acordo com o qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». A legislação anterior não continha tal definição, que era deixada ao intérprete.
A expressão indícios suficientes carece efectivamente de ser esclarecida. Ela não é elucidativa, pois está incompleta. Para a compreender, é indispensável perguntar: suficientes para quê[6]?
A resposta é encontrada através da análise da função que o conceito desempenha na estrutura do processo penal.
IV. Como é sabido, é possível, na marcha do processo penal comum, operar uma distinção entre duas grandes fases: a fase preparatória ou preliminar e a fase de julgamento[7]. Essa diferenciação, que está nomeadamente presente na sistematização do CPP ao autonomizar, na sua Parte II, os Livros VI e VII, só se compreende recorrendo ao mencionado conceito.
Efectivamente, entende o legislador português, acompanhado aliás pelo da generalidade dos países, que só é legítimo ao Estado submeter uma pessoa a julgamento pela prática de um crime havendo comprovados motivos que o justifiquem. O que impõe que a primeira etapa da tramitação do processo penal comporte uma fase, ou um conjunto de fases, que visa investigar cabalmente a existência de um crime de que houve notícia e determinar os seus agentes, descobrindo e recolhendo as provas. Terminada essa primeira parte do processo, apelidada de preparatória, e esgotadas as diligências de investigação possíveis, importa responder à seguinte questão: há, ou não, motivos que justifiquem a submissão de alguém a julgamento? Só uma resposta afirmativa permite a progressão do processo para a fase seguinte – a de julgamento.
Não é, em regra, assim no processo civil. Na maioria dos casos, o autor não necessita de produzir antes da audiência final a prova dos factos que alega. Basta-lhe apresentar uma petição inicial sem erros formais graves para que o processo possa avançar até à fase de julgamento.
Esta especial estruturação do processo penal encontra a sua razão de ser na particular gravidade das consequências que podem advir da simples submissão de uma pessoa a julgamento penal. Mesmo que essa pessoa não venha a ser condenada, ela sofrerá inevitavelmente fortes prejuízos para o seu nome e reputação pelo simples facto de «ter de se sentar no banco dos réus». Na verdade, e para além da possibilidade de se lhe continuar a aplicar eventuais medidas de coacção e de garantia patrimonial, que podem restringir de forma substancial os seus direitos fundamentais, é irrecusável o efeito sociológico estigmatizante resultante do conhecimento público de que uma pessoa vai ser julgada em processo penal.
O acto processual que representa a transição da fase preparatória para a de julgamento é a acusação ou a pronúncia. E o conceito que está pressuposto nesse salto qualitativo é o de indícios suficientes.
Nos crimes públicos e semi-públicos a acusação, a existir, é sempre formulada em primeiro lugar pelo Ministério Público. Ela significa o momento crucial do exercício da acção penal, chamando determinada pessoa à responsabilidade, para ser julgada pela jurisdição penal. Face ao princípio da obrigatoriedade a que o Ministério Público está vinculado, a dedução de acusação e a avaliação da suficiência de indícios que lhe está pressuposta traduz para este órgão do Estado um dever[8]. O assistente, querendo, acompanhará a acusação pública através de uma acusação subordinada (artigo 284.º).
Nos crimes particulares, a acusação, a existir, é sempre formulada em primeiro lugar pelo assistente. A sua dedução é um direito, cabendo ao assistente avaliar com plena liberdade da oportunidade do exercício da acção penal. Mas, embora o CPP não o afirme expressamente, deve entender-se que o exercício desse direito pressupõe também uma avaliação afirmativa quanto à existência de indícios suficientes[9].
Assim, a acusação é o meio processual de promover o exercício da acção penal. Independentemente de se aceitar que ela traduza o exercício de um direito de acção judicial em sentido próprio, ela representa sem dúvida o impulso exterior necessário para que a jurisdição penal actue.
No que toca ao despacho de pronúncia, ele é proferido pelo juiz que dirige a instrução. Sendo esta uma fase facultativa, cuja abertura depende de requerimento do arguido ou do assistente, a verificação judicial da suficiência dos indícios só tem lugar, segundo o actual modelo processual penal português, havendo uma iniciativa nesse sentido do arguido ou do assistente. E a avaliação feita pelo juiz de instrução é a comprovação judicial da avaliação anteriormente realizada pelo Ministério Público e pelo assistente (n.º 1 do artigo 286.º).
De salientar que o conceito de suficiência dos indícios é utilizado, na acusação e na pronúncia, exactamente com o mesmo significado. Os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento. Para o processo penal, a existência de suficiência de indícios significa que os indícios são suficientes para submeter alguém a julgamento[10]. O conceito está, assim, directamente ligado ao direito ao bom nome e reputação do cidadão, também por vezes conhecido como o direito à boa fama, cuja tutela aponta no sentido de serem evitados julgamentos injustificados.
V. A distinção entre fase preparatória e fase de julgamento envolve uma outra, que nela está pressuposta: a distinção entre juízo de certeza e juízo de probabilidade.
Para o final da fase de julgamento está reservado o juízo de certeza. Ele visa alcançar a prova dos factos alegados em juízo. No final da fase preparatória o juízo a formular é de probabilidade de futura condenação.
Como salienta Cavaleiro de Ferreira, «a prova do julgamento não é a prova para a acusação e tem alicerces numa certeza, e não numa probabilidade»[11].
Assim, os indícios qualificam-se de suficientes quando justificam a realização de um julgamento; e isso acontece quando a condenação for provável.
2. Significado da expressão indícios suficientes
2.1. Generalidades
I. Explicitada a sua função na marcha do processo penal, é chegado o momento de aprofundar o significado da expressão indícios suficientes.
A expressão é composta por dois vocábulos: indícios e suficientes.
De salientar, desde já, que a definição constante do n.º 2 do artigo 283.º apenas se reporta ao segundo vocábulo. A lei não nos diz o que são indícios, apenas explica quando os considera suficientes.
Esta ausência de definição terá certamente a ver com o facto de a palavra indícios ser utilizada com um sentido próximo do comum, não necessitando de um especial critério normativo: indício é uma palavra de origem latina que significa sinal, marca, indicação. Aplicado à investigação criminal, o conceito reporta-se à tarefa de descoberta e recolha de provas.
A palavra indícios, que aliás o CPP utiliza amiúde[12], refere-se, assim, ao conjunto das provas já recolhidas no processo[13] [14].
II. Para o qualificativo suficientes existe, como já se referiu, a definição legal constante do n.º 2 do artigo 283.º, a qual relaciona a suficiência dos indícios com uma possibilidade razoável de condenação em julgamento.
A avaliação da suficiência exige, assim, um juízo prognóstico sobre a possibilidade de condenação no final da fase do julgamento. O que pressupõe um raciocínio de conjugação entre todos os indícios, por forma a fundamentar esse juízo de prognose.
Esta definição, porém, continua a não ser esclarecedora. O que significa uma possibilidade razoável de condenação? Qual o grau de probabilidade que este conceito comporta?
Na resposta que doutrina e jurisprudência têm dado a estas questões podem distinguir-se três correntes fundamentais:
– uma primeira solução afirma que basta uma mera possibilidade, ainda que mínima, de futura condenação em julgamento;
– numa segunda resposta possível, é necessário uma maior probabilidade de condenação do que de absolvição;
– e uma terceira via defende ser necessária uma possibilidade particularmente forte de futura condenação.
Vejamos mais de perto cada uma destas soluções e façamos a análise crítica dos argumentos por elas invocados.
2.2. Suficiência como mera possibilidade, ainda que mínima
Numa primeira opinião, que se pode apelidar de menos exigente, os indícios já são suficientes quando deles resulte uma mera possibilidade, ainda que diminuta ou ínfima, de condenação.
Esta solução, que tem tido poucos seguidores, surge em regra associada especificamente à definição dos requisitos para o despacho de pronúncia, não ficando muitas vezes claro se os seus defensores a advogam também para a definição dos requisitos para a acusação.
O significado de suficiência dos indícios deve, nesta interpretação, ser interpretado de harmonia com o conceito inerente à expressão acusação manifestamente infundada, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º[15].
Os defensores desta tese fazem a seguinte equiparação: tal como o juiz de julgamento, ao proferir o despacho liminar de saneamento do processo, só pode rejeitar a acusação se ela for manifestamente infundada, também o juiz de instrução, ao proferir a decisão instrutória, só deve lavrar um despacho de não pronúncia se chegar à mesma conclusão.
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